Proposta de tese para o movimento estudantil

Texto originalmente publicado em 25 de abril de 2014

Nos anos 1950, o advogado gaúcho Raymundo Faoro deu sua contribuição à geração das formações ao escrever “Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro”.Tal qual Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Antonio Candido e Caio Prado Jr., com esta obra, Faoro entra para o rol dos pensadores que inventaram o Brasil ao estudar, explorar e diagnosticar a nossa política. Nessa análise, Raymundo Faoro explica a dinâmica do nosso sistema político com base na existência de um ator, protagonista e fundamental, que dá o tom e a medida da política. Estamos falando do estamento burocrático, um conceito de inspiração weberiana que designa um determinado grupo social associado ao comando do Estado e que, ao longo de nossa história, aproximou-se das correntes políticas mais influentes tão somente para se manter arvorado nos galhos do Estado.   

“Sobre as classes que se armam e digladiam, debaixo do jogo político, vela uma camada político-social, o conhecido e tenaz estamento, burocrático nas suas extensões e nos seus longos dedos.”

Raymundo Faoro, “Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro”. (1958)

A nossa política é marcada, portanto, pelo protagonismo ou, ao menos, pela imensa força do estamento burocrático, que desde o começo da nossa história é quem está posicionado no comando do Estado e, consequentemente, tem papel cental na política brasileira. Raymundo Faoro prossegue na explicação caracterizando o caráter estagnado, refratário a mudanças do estamento burocrático, um eterno apreciador do status quo. Foi capaz de se manter hegemônico numa proclamação palaciana de independência antes de qualquer revolução popular, num apoio à República bestializante antes da sua precipitação ameaçadora, no rearranjo de elites de 1930 e no seu posterior capitalismo associado. Foram inúmeras as jogadas e manobras de sobrevivência e recrudescimento da nossa elite político-burocrática. 

Em que pese o mais sólido e estável quadro de democracia já visto no Brasil, o paradigma burocrático continua muito bem, obrigado, quase intocado desde a primeira edição d”Os Donos do Poder”. Dessa vez, o status quo não é mantido por meio de golpes, revoltas ou quarteladas. Predomina um sofisticado e sutil que não se importa de fazer concessões democráticas, desde que seja capaz de controlar o ritmo, o conteúdo e o fluxo das demandas da sociedade civil.

Para caracterizar melhor o esquema de manutenção da hegemonia do estamento burocrático na Nova República, podemos nos valer da análise de Marcos Nobre, um pesquisador do Instituto de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP. Marcos Nobre, que já era celebrado na Academia pelas precisas críticas ao atual estágio de pesquisa em Direito no Brasil, foi um dos primeiros autores a dar um tratamento teórico apropriado para os protestos e manifestações que ocorreram em junho de 2013. 

Segundo Marcos Nobre, desde a redemocratização o nosso sistema político criou em torno de si uma blindagem. Essa blindagem do sistema político impede que a sociedade civil tenha acesso a política, isto é, inviabiliza que as suas demandas sejam processadas pelo Estado. Encastelado nas masmorras e nas torres do Estado, o estamento burocrático inovou e, confortavelmente ensimesmado, ergueu uma muralha impermeável. A sociedade bateu à porta da Assembleia Constituinte tendo debaixo do braço demandas acumuladas por anos de autoritarismo. As lideranças da morna transição barraram sua entrada lamentando o caráter difuso das reivindicações e a falta de um partido político que as articulasse de forma apresentável na plenária. Começa a criar forma e face o que hoje chamamos de Pemedebismo, em memória ao partido que capitaneou o processo de redemocratização.


Num segundo momento, a sociedade se rearticulou e novamente bateu de frente com a blindagem do sistema político no impeachment de Collor. Se de um lado, as ruas triunfaram ao ver o Presidente da República se retirar do Planalto no contexto de um impeachment, o sistema político não hesitou em sacrificar um dos seus para se manter no poder. Como uma pá de cal no assunto, fincou-se como verdade absoluta a tese de que Collor caíra porque não obtivera apoio do Congresso Nacional, inviabilizando um governo. Nossa classe política conseguiu se salvar da sua crise de cretinismo por meio da reafirmação e do fortalecimento dos seus dogmas. Num dos mais formidáveis exemplos da maleabilidade, nossa classe política criou o mito da governabilidade*. 

“As revoltas mostram que o funcionamento do sistema está em descompasso com as ruas. A sociedade alcançou um grau de pluralismo de posições e tendências políticas que não se reflete na multidão informa dos partidos.”

Marcos Nobre, “Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma”. (2013)

O impeachment de Collor não só manteve irredutível a blindagem, como inaugurou mais uma etapa da sua construção. Dos governos de Fernando Henrique Cardoso até Lula da Silva, atingindo seu pico de sofisticação no governo de Dilma Rousseff, a sociedade decaiu ainda mais em importância política. As pessoas não mais saíam as ruas, os movimento sociais foram aparelhados por instituições partidárias. Só o que podia influenciar a política palaciana de Brasília, e ainda assim o fazia com alguma dificuldade, eram as grandes intervenções e campanhas midiáticas. O sistema político abriu mão do diálogo com a sociedade civil em troca do diálogo com a opinião pública e, posteriormente, apenas com a opinião publicada. O debate político passou a ser quase que exclusivamente uma troca de acusações de corrupção entre condomínios rivais de poder: o duelo entre Jader Barbalho e Antônio Carlos Magalhães, o escândalo do Mensalão, os Atos Secretos de José Sarney, a pensão de Renan Calheiros. Se Marx estivesse vivo, talvez diagnosticasse mais um caso de cretinismo parlamentar crônico, a exemplo da França na segunda metade do século 19. A blindagem se tornava impermeável e o nosso sistema perversamente autopoiético.

Mas mesmo esse modelo fortalecido e que alguns até diriam ter atingido seu auge sofre reveses. Assim como na Constituinte e no Fora Collor, a blindagem do nosso sistema político sofreu um golpe digno de abalar as suas estruturas, mas cujo sucesso ainda não pode ser medido.

O filósofo espanhol Manuel Castells é um dos principais estudiosos das mudanças político-sociais que a sociedade moderna tem enfrentado nos últimos 30 anos. Maneco, como é chamado em Berkeley, tem se dedicado à compreensão e ao estudo do que ele chama de movimentos sociais da sociedade em rede. Sua teoria do poder afirma que as instituições sociais são criadas por quem tem poder para tal, e quem cria as instituições sociais as molda de acordo com seus valores e interesses. O poder, por sua vez, pode ser exercido por meio da coerção ou por meio da construção de significado na mente das pessoas. Mais do que isso, segundo Castells, onde há poder, há sempre contrapoder. Nossa sociedade é como é porque reflete o equilíbrio e os conflitos entre o poder e o contrapoder. A comunicação é essencial nesse processo, uma vez que é por meio dela que se cria significado. A grande novidade, porém, é que o nosso tempo é marcado pela autocomunicação, isto é, a capacidade de nos comunicarmos de maneira independente dos canais tradicionais de comunicação, eles mesmos instituições sociais moldadas por aqueles que têm poder. É nesse sentido, então, que cada vez mais temos condições de desafiar o status quo, articulando-nos em rede para moldar as instituições sociais de acordo com os nossos interesses e valores.

Mas que valores deverão ser esses?

“The way people think determines the fate of normas and values on which societies are constructed. While coercion and fear are critical sources for imposing the will of the dominant over the dominanted, few institutional systems can last long if they are predominantly based on sheet repression.”

Manuel Castells, “Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet”. (2012)

Queremos nos articular em rede para derrubar a blindagem do nosso sistema político, chamando o estamento burocrático para sua responsabilidade de servir à cidadania. Mas quais são os interesses da cidadania? Em outras palavras, que política vamos propor?

Afinal de contas, o que é política? Hoje quando ouvimos o termo “política”, nos vêm à cabeça a rejeição, a ideia de corrupção, mentira, conchavos e acordos entre bastidores. Atualmente, vivemos a crise de descrédito na política.

Mas será essa crise uma crise de essência? Será que a política é incapaz de fornecer respostas ou caminhos para os desafios da nossa sociedade? Será que a hora e a vez da política já se foram, e é tempo de darmos lugar a um novo modo de enxergarmos o espaço público? 

Ou será, porém, que estamos diante de uma crise de falta de política? Como acreditar no esgotamento da política se nunca foi oferecida uma alternativa bem sucedida de encaminhamento de questões públicas? Não será o atual descrédito com o status quo o derradeiro toque de chamada para o resgate da política?

Acredito na última alternativa. Para nós, é a hora de reinventar a política. É a hora de resgatar a prática da política de qualidade enxergando-a, como faz Hannah Arendt, como um agir conjunto. Em última análise, é disso que se trata a política: o exercício da capacidade que todos nós temos de agir em cojunto uns com os outros. Precisamos nos dedicar à construção de um espaço público de qualidade baseado no convencimento, na ação conjunta. 

“O único fator indispensável para a geração de poder é a convivência entre os homens. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e torna-se impotente, por maior que seja sua força e por mais válidas que sejam suas razões.”

Hannah Arendt, “A condição humana”. (1958)

É hora de arejar o formalismo e o tradicionalismo que hoje dirige nossa sociedade reiventando a política. No Estado. Na sociedade. Na Faculdade de Direito. No Centro Acadêmico. O resgate da política é a tarefa fundamental da nossa atividade político-acadêmica. Sabemos o que queremos, sabemos o que não queremos. Para viabilizar nossas reivindicações, precisamos de um ensino jurídico capaz de fazer do pensamento e da análise jurídica o locus no qual a sociedade que queremos adquire detalhada forma institucional, na linha do pensamento de Roberto Mangabeira Unger. 

O ano de 2013 entrou para a história da nossa política. Vivemos um ano que será lembrado como o ano da participação. Nas ruas, os brasileiros clamaram por uma democracia de maior qualidade. No Pátio, se ouve uma reivindicação parecida que, acima de tudo, pede por participação.

Em 2013 acordamos para a realidade de que não vivemos mais na década de 1990, e nem mesmo nos anos 2000. Estamos diante de um novo tempo, ainda não bem diagnosticado, mas cuja palavra de ordem é, cada vez mais, democracia. E mais democracia porque cada vez mais é possível participar, falar, ouvir e agir em conjunto. Acordamos para uma nova relação entre o Estado e a sociedade civil, e é no seio desta que o movimento estudantil encontra-se preparado para ser protagonista. Coordenar esforços, mobilizar entidades, conscientizar o público, fundamentalmente, agir em conjunto. Fazer política. 

*É preciso agora abrir um breve parênteses na narrativa. Um mito não é uma verdade, nem uma mentira. Antes, é um modo de articular os fatos à luz de uma determinada racionalidade. A ideia de que só se pode governar o Brasil com maioria parlamentar esmagadora é um mito, pois, como demonstra o trabalho de Fernando Limongi, não existem argumentos científicos que comprovem essa teoria. O que não quer dizer, contudo, que a articulação de grandes blocos de apoio parlamentar ao governo não sejam uma técnica de governo. 

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