Texto originalmente publicado em 27 de novembro de 2016
Para quem se quer humanista, democrata, civilizado, comemorar a morte de um adversário político é o pior contrassenso possível. A condição humana, nos ensina Hannah Arendt, tem dimensões que vem antes e vão além além da “ação”, atividade cujo elemento central é a política. Na tríade da “vita activa”, é o “labor” a atividade que corresponde aos nossos processo biológicos, tendo como condição humana a própria vida.
Que brisa. Mas é que, se não fizermos a distinção entre “ação” e “labor” diante da morte de Fidel, corremos o risco de passar a mesma vergonha que a esquerda latino-americana e europeia passou quando cantou a morte de Margaret Thatcher. No final do dia, pouco importa a saúde daquele a quem a história confiou a tarefa de operar o seu espírito em um determinado momento. A discussão que interessa é sobre a longevidade das suas ideias.
Aí sim, podemos comemorar. O duro revés que um regime violento haverá de sofrer em função da queda do seu principal e mais simbólico Comandante. Tal qual o regime soviético, que não fez mais do que erguer seu próprio Czar Vermelho, o stalinismo tropical mudou de cor mas apenas emulou aquilo que de mais clássico e icônico sempre houve no caudilhismo caribenho e sul-americano. Famílias miseráveis, trabalhadores presos, intelectuais perseguidos e cidadãos exilados: são esses os personagens que compõem o retrato da ditadura cubana meio século depois de Sierra Maestra. Retrato que tem como pano de fundo um paredão borrado com diferentes tons de vermelho – o sangue mais ou menos estancado de várias gerações de cubanos e cubanas.
“Elas estão na cozinha, preparando a comida” foi a resposta de Fidel quando perguntado sobre a falta de mulheres na delegação cubana à OMC. Como não poderia deixar de ser, já que estamos no Brasil, a nossa boa e velha esquerda ergue o punho cerrado para homenagear seu ícone progressista. Essa esquerda, que no nosso país se arroga a posição de guardiã da luta contra todo tipo de opressão, porém, tem pouco ou nada a dizer sobre o machismo e a homofobia de Estado com que Fidel e Che governaram. “Che foi apenas homem de seu tempo”, dirá um Jean Wyllys em defesa do arquétipo viril do “novo homem cubano” de que Che fala em seus livros. Como é árido o campo dos frutos humanistas da revolução cubana! E como é fértil a imaginação cínica da nossa elite cultural!
Famílias miseráveis, trabalhadores presos, intelectuais perseguidos e cidadãos exilados: são esses os personagens que compõem o retrato da ditadura cubana meio século depois de Sierra Maestra. Retrato que tem como pano de fundo um paredão borrado com diferentes tons de vermelho – o sangue mais ou menos estancado de várias gerações de cubanos e cubanas.
Se não é digno comemorar a morte de outro ser humano, nem homenagear o seu legado de tragédias humanitárias, que fazer diante de uma notícia tão impactante? Alertou Ramón Saúl Sanchez, líder do Movimiento Democracia, que “a morte de um tirano não significa a liberdade do povo de Cuba”. A morte de Fidel pode representar mais um sopro de esperança para o povo cubano, sofrido em muito mais do que cinco décadas de autoritarismo e violência de Estado, na medida em que o seu fim agite o processo político de reformas democráticas e modernizantes na ilha. Mas isso não é garantido. A libertação de Cuba depende muito mais do engajamento das forças democráticas de todo o continente americano do que das nossas festas. Nesse debate, Obama já disse a que veio. Resta ouvirmos de Macris, Trumps, Santos e Temers que papel querem ter daqui para frente.
Fidel morreu, mas e o seu regime? Quando esse morrer, charutos e Cuba Libre serão por minha conta.
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