Ferreira Gullar nos rejuvenesce

Texto originalmente publicado em 4/12/2016

Muitos de nós, jovens, perceberam a existência de um poeta chamado Ferreira Gullar graças a uma frase sua que poderia perfeitamente ter sido encontrada em um parachoque de caminhão, desses que a gente fica admirado e assustado de ver rasgando as estradas do Brasil: “A arte existe porque a vida não basta!”.  Era essa a senha que abria as portas para a sua poesia.

Abria, quero dizer, concretamente. O “Poema enterrado” é, literalmente, um grande cubo vermelho (50×50) enterrado em um buraco, dentro do qual você encontra um cubo verde (30×30), dentro do qual está outro cubo branco, ainda menor. Você vai abrindo e descobrindo os cubos até que encontra escrito: “rejuvenesça”.

A arte do poeta maranhense que hoje nos deixou é vasta como a complexidade da vida humana. Poeta, mas também artista plástico. Artista, mas também apaixonado militante. Militante, mas sempre um corajoso refém da coerência. Ferreira Gullar era nosso maior poeta vivo. Poderia ter sido nosso primeiro Nobel.

Rejuvenescer. Precisamos todos. Para quem é jovem e faz política, ainda mais, José Ribamar Ferreira, o Ferreira Gullar, é obrigatório. Afinal, quem melhor do que nós aprecia o vigor da política que é arte e da arte que é política? Presidida por Ferreira em 1962, o Centro Popular de Cultura (o CPC) da UNE, é uma verdadeira lenda, presente no projeto político de quem ainda sonha que a UNE vai voltar a lutar por um Brasil moderno um dia.

Rompeu com a tradição parnasiana para abraçar a vanguarda modernista. Enfrentou a ditadura militar com as armas do seu Poema Sujo. Denunciou os governos de Lula e Dilma quando a esquerda ainda não tinha vergonha deles. Ferreira Gullar destacou-se porque aprendeu a ousar contra o óbvio, contra aquilo que é melhor você gostar para não atrair problemas. Também por isso, sabemos o que a perda dessa figura representa para a nossa cultura.

A perda. Tema muito presente em sua obra. Não à toa: dois filhos perdidos para a esquizofrenia. Uma esposa, incotáveis amigos. A dor da sua partida podemos tentar superar lendo o que o próprio tinha a dizer sobre as perdas da sua vida. Para quem quiser conhecer a sua obra, selecionamos alguns poemas, além dos já mencionados “Poema Enterrado” e “Poema Sujo”, esse último grande demais para ser publicado em uma pequena homenagem, pesadíssimo de carregar pelo seu valor histórico, político e literário.

“A linguagem nasce com o poema” era a utopia de Ferreira Gullar, que mais tarde percebeu que isso era impossível. Mas e daí? Em outra frase digna de uma tatuagem, “não quero ter razão, quero é ser feliz!”, o poeta responde à sua própria angústia e nos ensina a pegar mais leve. Toda uma vida dedicada a explodir o poema para além do verso, para dentro das nossas vidas.

O José Ribamar Ferreira, do Maranhão, inventou o Ferreira Gullar, do mundo. O que se foi se foi, diria um de seus poemas. Se volta, é feito morte. Mas então por que nos faz o coração bater tão forte?

NÃO HÁ VAGAS
Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

SUBVERSIVA
Ferreira Gullar

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.

POEMA BRASILEIRO 
Ferreira Gullar

No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

MEU POVO, MEU POEMA
Ferreira Gullar

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

O QUE SE FOI
Ferreira Gullar

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

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