Texto originalmente publicado em 05 de dezembro de 2018
Dezembro chegou. O natal vem logo atrás. É chegada a hora de pensarmos a ceia, ensaiarmos a piadinha do pavê. Já é hora de operar o boicote à uva passa dentro de casa. E, como não poderia deixar de ser, é hora, também, da troca de presentes.
É sobre esse momento especial que eu gostaria de falar. com você. Você, que fez sua lista de desejos, já parou para pensar de onde veio e quem é que fabricou os presentes que quer dar ou receber? A pergunta é pertinente e necessária porque, infelizmente, trabalho escravo não é coisa do passado.
Pelo contrário. São significativas as chances de que ao menos algum item típico das festas de fim de ano chegue às nossas mãos tendo sido feito em condições análogas à escravidão. Muito mais comum do que parece, na atualidade existem pelo menos 20 milhões de pessoas vítimas de algum tipo de trabalho escravo. A bem da verdade, em função da extrema dificuldade de se rastrear a cadeia produtiva do escravismo, até mesmo esse número deve estar sendo subestimado, de acordo com a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Para o Brasil, os dados são ainda mais rarefeitos, uma vez que as autoridades não se arriscam a cravar um número oficial. Estima-se, mui por cima, que em nosso país haja algo em torno de 400 mil trabalhadores e trabalhadoras escravizadas, sendo a maioria do Maranhão e com destino ao Pará.
Desconhecida e subterrânea, a escravidão contemporânea (me recuso terminantemente a associar a expressão “moderna” ao conceito de escravidão de qualquer tipo) é bastante diferente do clássico modo de produção escravista com que nos acostumamos a nos horrorizar nos livros de história. Hoje, falar em escravidão é falar em condições degradantes de trabalho, servidão por dívida, ameaças à integridade pessoal do trabalhador, restrições de liberdade, jornadas exaustivas de trabalho, retenção de documentos e qualquer tipo de trabalho forçado.
Dados da ONG Repórter Brasil dão conta de que, na zona rural, os homens são as maiores vítimas da escravidão, obrigados a trabalhar no desmatamento, na produção de carvão e da cana-de-açúcar. Já nas cidades, os homens passam a ser explorados fundamentalmente pela construção civil e pela indústria têxtil. Nas nossas ruas, porém, a crueldade maior cai sobre mulheres e crianças, vítimas, além de tudo, da exploração sexual.
Desnecessário dizer para quem mora em São Paulo, o negócio da escravidão é umbilicalmente ligado ao trabalho infantil e ao tráfico de pessoas. Eis uma das tríades mais lamentavelmente lucrativas das sociedades contemporâneas, que recentemente tomou gosto pela exploração específica do sofrimento de imigrantes e refugiados sul-americanos, caribenhos e africanos que procuram o Brasil em busca de esperança e oportunidade.
Nem tudo é desgraça, porém. O Brasil é referência internacional em matéria de repressão ao trabalho escravo, na opinião da Organização das Nações Unidas. Ainda em 1995, uma decisão política corajosa do então governo Fernando Henrique Cardoso cristalizou, por meio do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, o reconhecimento institucional de que o problema existia e era crônico no país: ousadia pioneira na comunidade internacional que, na época, alçou o Brasil a um protagonismo até então inédito no campo dos direitos humanos.
Desde então, temos dados mais alguns bons exemplos. Em São Paulo, uma ousada Lei Estadual 14.946/13 — apelidada pela imprensa de Lei “Bezerra” em homenagem a seu criador, o Deputado Estadual Carlos Bezerra Jr — autoriza que empresas flagradas se valendo da escravidão em sua cadeia produtiva tenham seu cadastro de contribuinte do ICMS cassado por até 10 (dez) anos. Na prática, a lei impede que empresas usuárias de trabalho escravo possam fazer negócio no Estado de São Paulo. Trabalho escravo não pode dar lucro; e prejudicar o bolso de quem o explora para ganhar dinheiro tem se provado a arma mais eficaz na luta contra esse persistente entulho dos velhos tempos.
Há muitos inimigos a se combater. Desarticular a escravidão significa enfrentar, constantemente, todo tipo de interesse criminoso ou simplesmente cínico. Bom exemplo é a irritante luta que somos obrigados a travar, de tempos em tempos, para manter na legislação um conceito minimamente eficaz do que é, afinal, o trabalho escravo. Mais: quem não se lembra da tentativa recente de partidarização da “Lista Suja”, uma importante ferramenta técnica para a conscientização das pessoas sobre a presença do trabalho escravo no nosso cotidiano? Sem falar nas constantes e bem sucedidas manobras de contingenciamento orçamentário que o sistema de prevenção e combate ao trabalho escravo sofre a cada ano.
Para acabar de vez com a escravidão em nosso tempo, é preciso impor prejuízo de verdade a quem se utiliza desse crime para lucrar de maneira indevida. Às empresas, cabe monitorar suas próprias cadeias produtivas, o que inclui necessariamente a de seus fornecedores. Aos governos, cabe a tarefa simples e difícil de fazer cumprir a legislação já existente, fiscalizando e punindo de maneira exemplar quem se vale da escravidão para fazer negócio.
Finalmente, o coração de uma boa estratégica de erradicação da escravidão consiste na conscientização ativa do consumidor final. Os especialistas são unânimes: não há aliado melhor do que nós mesmos. Por isso, nesse natal, tome cuidado. Preste atenção nas lojas, nas empresas, nas marcas que você considera prestigiar como cliente. Não se permita fazer parte, com seu dinheiro, de uma das tragédias humanitárias mais cruéis e presentes do nosso tempo.
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